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Nagôs transatlânticas: trançar caminhos entre afrofuturismo e ancestralidade

01/02/2024

Desbravadoras da relação entre poesia e realidade, Denise Fonseca, Lídia Marques e Sabrina Nascimento cutucam o limiar entre fabulação e fato por meio de um projeto de pesquisa que, como elas definem, “se debruça sobre a poética do uso e feitura das tranças”. No Laboratório de Pesquisa em Audiovisual da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ), as Nagôs Transatlânticas exploram os caminhos das tranças nagôs.

Formado por uma trancista, uma geógrafa e uma fotógrafa/videomaker, o projeto “Nagôs Transatlânticas” ancora-se em “O Atlântico Negro”, de Paul Giroy, e une os três universos das pesquisadoras em uma produção que se lança sobre questões relacionadas à diáspora africana, à beleza negra e às histórias que podem ser contadas a partir da trança nagô, sejam elas reais ou fabulosas.

A lacuna que encontraram nas representações imagéticas de trancistas em Fortaleza foi um grande motivador para a investigação sobre a qual se debruçaram no Laboratório de Pesquisa da ECA/CCBJ em 2023. Quando Sabrina Nascimento, 20, se deparou com a oportunidade lançada pelo equipamento ao qual se refere como sua segunda casa, já pensava em voltar o olhar para questões relacionadas ao cabelo, aplicando o tema a um formato com o qual já está familiarizada: o audiovisual.

Enquanto trancista, Denise Fonseca, 26, encara seu papel no projeto como um caminho entre seu grupo e a temática sobre a qual elas decidiram investigar. E as tranças, como ela afirma, fazem o caminho entre a vida das três pesquisadoras. A escolha das tranças nagôs, em específico, foi feita pela sua feitura livre, partindo de diferentes origens, e pela utilização histórica do penteado como rotas de fuga.

Com Lídia Marques, 25, no grupo, além de dar visibilidade às trancistas da cidade de Fortaleza, as Nagôs Transatlânticas também se propõem a falar sobre o caminhos que os negros percorreram entre África e Oceano Atlântico, unindo o uso e a feitura das tranças com a geografia – campo de conhecimento familiar para a geógrafa já acostumada a desenvolver pesquisa científica. Não é por acaso que o nome do projeto quase se firma como “Trançando Caminhos”.

“Me tornei pesquisadora no Nagôs [Transatlânticas]”, afirma Denise, antes de recordar que iniciou sua profissão pesquisando, tendo como professora uma historiadora que a mostrou que a trança está para além de si mesma. A noção deste conceito norteou todo o processo de pesquisa do projeto, que rendeu um roteiro audiovisual que não nega a interdisciplinaridade, significados e simbolismos das tranças nagô e as questões que as cercam.

Assim como ela, Sabrina também já havia tido experiências informais com a pesquisa. No caso da fotógrafa e videomaker, as pesquisas se voltavam ao audiovisual, buscando investigar não somente filmes, mas também produções teóricas sobre estes. No projeto de seu grupo para o Laboratório de Pesquisa do CCBJ, não foi diferente.

Lídia, Denise e Sabrina dividiram a pesquisa bibliográfica entre textos científicos sobre trancismos e suas origens e materiais audiovisuais. Às segundas-feiras, geralmente, elas faziam rodas de conversa para debater o que haviam consumido para fazer o projeto tomar forma. Mas não ficaram apenas no campo teórico.

Elas entrevistaram onze trancistas, do Pirambu e do Grande Bom Jardim, territórios da periferia de Fortaleza, com uma abordagem de quem busca as referências, a história de como começaram a fazer tranças e suas histórias de vida. Elas queriam conhecê-las e apresentá-las ao mundo.

O desejo de realizar uma produção audiovisual também permanece aceso no coração das três pesquisadoras, que, por enquanto, têm um roteiro que mostra o dia a dia das trancistas e traz entrevistas, narração em off, performance e fotografias em um produto que deliberadamente borra a linha entre o documental e o imaginativo.

A proposta das Nagôs Transatlânticas é, além de exibir a realidade, dispor em imagens “o que a gente quer e o que a gente imagina”, como afirma Sabrina, dando ênfase ao caráter especulativo ao qual elas se dedicaram para a produção da pesquisa. Além das consultas bibliográficas, imaginação e criatividade também fazem parte do desenvolvimento deste trabalho.

“Esse projeto é lindo”, elas ouviram de diversas pessoas. A dose de subjetividade no processo de pesquisa e no resultado do produto é parte da razão do retorno positivo que escutaram e também denota um tipo de produção de pesquisa que leva em conta a pessoalidade das pesquisadoras, mas a importância do projeto não está somente em sua poesia.

Subjetividade e ciência, arte e pesquisa

“Contribuir para a existência das trancistas e cientificar isso”. Conforme Lídia Marques, é este o propósito central do projeto encabeçado por ela, Sabrina Nascimento e Denise Fonseca. “Como é importante pessoas negras estudarem ancestralidade”, pontua Lídia, que também conta sobre a necessidade de se discutir os direitos trabalhistas das trancistas que, na maioria dos casos, atuam como profissionais autônomas.

Evidenciar a importância de uma profissão ligada à estética negra e sua relação com a ancestralidade apontam para a necessidade de dar continuidade ao trabalho das trancistas e de continuar conhecendo sua história, como afirma Denise. Nesse sentido, a expectativa das pesquisadoras sempre foi grande e o processo, conforme Sabrina, as preparou para isso.

Embora não tenham finalizado o processo no Laboratório de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes com o produto que gostariam – um filme, elas seguem com o desejo de realizá-lo para fazer valer o esforço e dedicação que dispuseram durante os cinco meses de pesquisa no equipamento, dando vida ao roteiro que construíram.

Mesmo com os desafios de limitação de tempo e pressão interna para desenvolver o que estavam se propondo a fazer naquele processo formativo, o projeto “se tornou maior que nós”, diz Denise. Para a trancista, “parar para ler e estudar foi difícil”, estabelecer uma rotina e equilibrar os afazeres do grupo foram dificuldades que elas precisaram enfrentar para realizar o projeto, assim como deparar-se com o apagamento das trancistas.

Lídia, que já havia desenvolvido pesquisas científicas vinculadas à universidade, visualiza no processo de pesquisa vivido na Escola de Cultura e Artes do CCBJ uma possibilidade de aprofundar as subjetividades. “Me senti mais segura”, confessa, dando importância ao acompanhamento oferecido pelo equipamento.

Sabrina não nega que suas expectativas sempre foram grandes e, ainda que os desafios tenham surgido e que tenha o desejo de realizar o filme que ela e suas companheiras de pesquisa roteirizaram, em nenhum momento as expectativas foram quebradas. Ela considera o projeto concretizado na união das três Nagôs Transatlânticas e no processo de investigação no qual mergulharam juntas.

Sabrina, Lídia e Denise aplicaram uma perspectiva regional a um tema que reconhecem vir do outro lado do Atlântico e de seus antepassados. A proposta de produzir um material artístico sobre ancestralidade, por meio de tranças que por vezes enfeitam suas cabeças, as torna pontes entre o ofício de manter viva a simbologia de um penteado que está além da estética e a história que elas decidiram contar.

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