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Rendas & Fiados: História contada pela dramaturgia

O projeto Rendas e Fiados, criado a partir da tese de doutorado de Hector Isaías, o uniu a Tatiane Sousa no Laboratório de Pesquisa em Teatro da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ), em um processo de investigação ancorado em documentos do século XVIII, “que atestam o projeto colonial que deu cabo ao genicídio indígena em curso desde então”.

“Agô”, “Menina do Maracujá”, “Audiência” e “Incelença” são os textos que compõem o recorte da pesquisa iniciada pela dupla no Laboratório de Pesquisa do CCBJ. Nas palavras dos pesquisadores: “Em mãos a prova cabal de um assalto quantificado do que se tinha aqui, um documento do século XVIII intitulado “mostras de rendas, matérias e fiados, por donde se faz evidente o adiantamento que tem tido os rapazes e índios da Escola de Lê e Escrever e as raparigas na mestra em que andam aprendendo”. As “Vilas de Índios” descritas neste documento são hoje bairros situados na periferia de Fortaleza. Assim se engendra esta narrativa histórica que compartilhamos como objeto disparador dessa pesquisa dramatúrgica”.

Confira os roteiros:

Roteiros_-Rendas-Fiados

Da encruza entre as vivências de Gabriel França, 22, Rafael Semino, 27, e Felipe Rodrigues, 26, nasceu um experimento cênico que transformou-se em espetáculo. Os integrantes do coletivo Farol Novo se reuniram no Laboratório de Pesquisa em Teatro da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ) e deram continuidade a um processo que não começou ali.

Conforme Gabriel França, o espetáculo “Exu não vem hoje” é baseado em pesquisa. Vindos de um longo processo que foi iniciado no Laboratório de Pesquisa do Porto Iracema das Artes, ele e Rafael Semino vinham desenvolvendo pesquisas relacionadas a questões como o tempo espiralar e a oralidade. 

O experimento cênico e o coletivo Farol Novo nasceram quase juntos, mas somente nos Laboratórios de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes do CCBJ “Exu não vem hoje” tornou-se um espetáculo. Enquanto aprofundavam as investigações no Centro Cultural Bom Jardim, desenvolviam também uma experiência na iniciativa Zona de Criação, do Instituto Dragão do Mar (IDM).

Conforme conta Felipe, o Laboratório de Pesquisa da ECA/CCBJ “conectou tudo”. “Através dele [Laboratório] pudemos ter o que esperávamos com o trabalho”, conclui. Com a meta de transformar o experimento em espetáculo traçado desde o início, o objetivo foi cumprido. “Tudo que a gente queria foi suprido”, diz Gabriel. 

Atravessado por diversas linguagens, a mediação da professora Deborah Santos – que assina também a interlocução coreográfica do projeto – trouxe, pela sua experiência na dança, grande colaboração em relação aos movimentos e marcações necessários ao produto desenvolvido pelo grupo. 

Conforme Gabriel França, assim como a dança, o rap e o funk fazem parte do espetáculo. Uma das cenas que sentiam necessidade de fazer melhorias era a do rap. A partir do encontro com o artista Z.O, eles compuseram mais uma música e também trabalharam essa linguagem no projeto.

Repleto de camadas, o espetáculo propicia diferentes percepções a diferentes públicos. Segundo Gabriel, quem é de terreiro, assim como ele, pode acessar diferentes camadas, ao mesmo tempo, quem não é adepto a religiões de terreiro não fica imune à apresentação.

Cores para além do preto e do vermelho, figurinos e cenários diferentes, um totem, um banner que conta uma história paralela àquela contada por “Exu não vem hoje” no palco e outros objetos de arte são grande parte das novidades possibilitadas pela pesquisa.

Focados no objetivo final, Rafael Semino, Gabriel França e Felipe Rodrigues desenvolveram sua pesquisa a partir do diálogo com profissionais diversos, de diferentes espaços, voltando-se à iluminação, cenário, figurino, coreografia, partitura e música. Assim, eles se propuseram a dar mais corpo à pesquisa de mestrado de Rafael.

Enquanto ele leva ao grupo sua bagagem acadêmica, Gabriel considera sua experiência como um contraponto; seus conhecimentos são da rua, do terreiro e da experimentação, embora seu primeiro contato com o desenvolvimento de pesquisa tenha ocorrido no Porto Iracema das Artes. Já Rafael se tornou pesquisador no Laboratório de Pesquisa do CCBJ – o espaço foi uma oportunidade de compreender como funciona o processo de produção de pesquisa.

Felipe considera que o projeto ainda estava e sempre estará em pesquisa. “Agora é lançar isso pro mundo, difundir o que fizemos e celebrar isso”, projeta Felipe Rodrigues. “Exu não vem hoje” começa na academia e ganha vida em centros culturais, a partir das encruzas internas e externas, mas não termina aqui.

Desbravadoras da relação entre poesia e realidade, Denise Fonseca, Lídia Marques e Sabrina Nascimento cutucam o limiar entre fabulação e fato por meio de um projeto de pesquisa que, como elas definem, “se debruça sobre a poética do uso e feitura das tranças”. No Laboratório de Pesquisa em Audiovisual da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ), as Nagôs Transatlânticas exploram os caminhos das tranças nagôs.

Formado por uma trancista, uma geógrafa e uma fotógrafa/videomaker, o projeto “Nagôs Transatlânticas” ancora-se em “O Atlântico Negro”, de Paul Giroy, e une os três universos das pesquisadoras em uma produção que se lança sobre questões relacionadas à diáspora africana, à beleza negra e às histórias que podem ser contadas a partir da trança nagô, sejam elas reais ou fabulosas.

A lacuna que encontraram nas representações imagéticas de trancistas em Fortaleza foi um grande motivador para a investigação sobre a qual se debruçaram no Laboratório de Pesquisa da ECA/CCBJ em 2023. Quando Sabrina Nascimento, 20, se deparou com a oportunidade lançada pelo equipamento ao qual se refere como sua segunda casa, já pensava em voltar o olhar para questões relacionadas ao cabelo, aplicando o tema a um formato com o qual já está familiarizada: o audiovisual.

Enquanto trancista, Denise Fonseca, 26, encara seu papel no projeto como um caminho entre seu grupo e a temática sobre a qual elas decidiram investigar. E as tranças, como ela afirma, fazem o caminho entre a vida das três pesquisadoras. A escolha das tranças nagôs, em específico, foi feita pela sua feitura livre, partindo de diferentes origens, e pela utilização histórica do penteado como rotas de fuga.

Com Lídia Marques, 25, no grupo, além de dar visibilidade às trancistas da cidade de Fortaleza, as Nagôs Transatlânticas também se propõem a falar sobre o caminhos que os negros percorreram entre África e Oceano Atlântico, unindo o uso e a feitura das tranças com a geografia – campo de conhecimento familiar para a geógrafa já acostumada a desenvolver pesquisa científica. Não é por acaso que o nome do projeto quase se firma como “Trançando Caminhos”.

“Me tornei pesquisadora no Nagôs [Transatlânticas]”, afirma Denise, antes de recordar que iniciou sua profissão pesquisando, tendo como professora uma historiadora que a mostrou que a trança está para além de si mesma. A noção deste conceito norteou todo o processo de pesquisa do projeto, que rendeu um roteiro audiovisual que não nega a interdisciplinaridade, significados e simbolismos das tranças nagô e as questões que as cercam.

Assim como ela, Sabrina também já havia tido experiências informais com a pesquisa. No caso da fotógrafa e videomaker, as pesquisas se voltavam ao audiovisual, buscando investigar não somente filmes, mas também produções teóricas sobre estes. No projeto de seu grupo para o Laboratório de Pesquisa do CCBJ, não foi diferente.

Lídia, Denise e Sabrina dividiram a pesquisa bibliográfica entre textos científicos sobre trancismos e suas origens e materiais audiovisuais. Às segundas-feiras, geralmente, elas faziam rodas de conversa para debater o que haviam consumido para fazer o projeto tomar forma. Mas não ficaram apenas no campo teórico.

Elas entrevistaram onze trancistas, do Pirambu e do Grande Bom Jardim, territórios da periferia de Fortaleza, com uma abordagem de quem busca as referências, a história de como começaram a fazer tranças e suas histórias de vida. Elas queriam conhecê-las e apresentá-las ao mundo.

O desejo de realizar uma produção audiovisual também permanece aceso no coração das três pesquisadoras, que, por enquanto, têm um roteiro que mostra o dia a dia das trancistas e traz entrevistas, narração em off, performance e fotografias em um produto que deliberadamente borra a linha entre o documental e o imaginativo.

A proposta das Nagôs Transatlânticas é, além de exibir a realidade, dispor em imagens “o que a gente quer e o que a gente imagina”, como afirma Sabrina, dando ênfase ao caráter especulativo ao qual elas se dedicaram para a produção da pesquisa. Além das consultas bibliográficas, imaginação e criatividade também fazem parte do desenvolvimento deste trabalho.

“Esse projeto é lindo”, elas ouviram de diversas pessoas. A dose de subjetividade no processo de pesquisa e no resultado do produto é parte da razão do retorno positivo que escutaram e também denota um tipo de produção de pesquisa que leva em conta a pessoalidade das pesquisadoras, mas a importância do projeto não está somente em sua poesia.

Subjetividade e ciência, arte e pesquisa

“Contribuir para a existência das trancistas e cientificar isso”. Conforme Lídia Marques, é este o propósito central do projeto encabeçado por ela, Sabrina Nascimento e Denise Fonseca. “Como é importante pessoas negras estudarem ancestralidade”, pontua Lídia, que também conta sobre a necessidade de se discutir os direitos trabalhistas das trancistas que, na maioria dos casos, atuam como profissionais autônomas.

Evidenciar a importância de uma profissão ligada à estética negra e sua relação com a ancestralidade apontam para a necessidade de dar continuidade ao trabalho das trancistas e de continuar conhecendo sua história, como afirma Denise. Nesse sentido, a expectativa das pesquisadoras sempre foi grande e o processo, conforme Sabrina, as preparou para isso.

Embora não tenham finalizado o processo no Laboratório de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes com o produto que gostariam – um filme, elas seguem com o desejo de realizá-lo para fazer valer o esforço e dedicação que dispuseram durante os cinco meses de pesquisa no equipamento, dando vida ao roteiro que construíram.

Mesmo com os desafios de limitação de tempo e pressão interna para desenvolver o que estavam se propondo a fazer naquele processo formativo, o projeto “se tornou maior que nós”, diz Denise. Para a trancista, “parar para ler e estudar foi difícil”, estabelecer uma rotina e equilibrar os afazeres do grupo foram dificuldades que elas precisaram enfrentar para realizar o projeto, assim como deparar-se com o apagamento das trancistas.

Lídia, que já havia desenvolvido pesquisas científicas vinculadas à universidade, visualiza no processo de pesquisa vivido na Escola de Cultura e Artes do CCBJ uma possibilidade de aprofundar as subjetividades. “Me senti mais segura”, confessa, dando importância ao acompanhamento oferecido pelo equipamento.

Sabrina não nega que suas expectativas sempre foram grandes e, ainda que os desafios tenham surgido e que tenha o desejo de realizar o filme que ela e suas companheiras de pesquisa roteirizaram, em nenhum momento as expectativas foram quebradas. Ela considera o projeto concretizado na união das três Nagôs Transatlânticas e no processo de investigação no qual mergulharam juntas.

Sabrina, Lídia e Denise aplicaram uma perspectiva regional a um tema que reconhecem vir do outro lado do Atlântico e de seus antepassados. A proposta de produzir um material artístico sobre ancestralidade, por meio de tranças que por vezes enfeitam suas cabeças, as torna pontes entre o ofício de manter viva a simbologia de um penteado que está além da estética e a história que elas decidiram contar.

Presentes na vida uns dos outros há tanto tempo, eles têm dificuldade de recordar como se conheceram, mas permanecem juntos até mesmo na empreitada de desenvolver um projeto de pesquisa.

Encabeçado por Ariadna da Silva, 26, Eli Rodrigues, 26, e Gabriely Silva, 28, o projeto “Cultura digital e educação: o processo de ensino e aprendizagem” se propôs a investigar a inserção da cultura digital nas salas de aula, por meio do Laboratório de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ).

Professora da educação básica, Gabriely já observava a presença do universo digital nas salas de aula. Quando fez um curso de marketing durante a pandemia, visualizou o potencial de geração de renda proporcionado pelas ferramentas digitais. Inicialmente, o grupo pensou em voltar a pesquisa para a compreensão da potencialidade deste meio para a empregabilidade.

Ao lado de Ariadna e Eli, que também atuam como educadores, o tema do projeto deste grupo até poderia ser outro, mas provavelmente seguiria voltado à educação. Os processos relacionados ao digital eram também presentes na vida de Ariadna, que já havia participado de projetos voltados para a educação midiática, relacionados a fake news e manuseio de dados.

Com objetivo de produzir um artigo científico a respeito do tema, eles partiram de um referencial teórico e aplicaram questionários a estudantes e professores de uma escola, localizada entre os bairros Vila Pery e Parque São José. Em seguida, realizaram uma análise dos dados recolhidos.

Apesar da experiência prévia dos três com o desenvolvimento de pesquisa, o processo não ocorreu sem dificuldades. Quando receberam oficinas de análise de dados ao final do percurso formativo, depararam-se com a complexidade da tarefa, considerada um dos maiores desafios encontrados pelo grupo.

A limitação de tempo os impediu de realizar o produto que gostariam, mas não os pararam na produção daquilo que mais sentiram dificuldade de fazer: a análise de dados coletados por eles por meio dos formulários, apresentada na Partilha Final dos Laboratórios de Pesquisa da ECA/CCBJ, momento em que cada grupo compartilha suas descobertas, experiências e produtos.

O grupo se utilizou de um referencial teórico, aplicação de questionários e análise de dados. Na segunda etapa da pesquisa, eles trabalharam com duas turmas, uma regular e outra digital. Ao fim do processo, eles traçaram o perfil digital dos 25 alunos entrevistados a fim de investigar a percepção e a relação destes com a cultura digital e com a educação.

Entre as descobertas que tiveram durante o processo, Eli Rodrigues aponta o esvaziamento de senso crítico como uma das questões que chamaram sua atenção. A plataforma Cloe, com a qual o grupo entrou em contato durante a pesquisa, conta com a mediação de um professor e, de acordo com Eli, não abre margem para o desenvolvimento de senso crítico nem fomenta debates. 

Focados no ensino de jovens entre 11 e 13 anos, outra delimitação definida por Gabriely, Eli e Ariadna, que vivem nos respectivos bairros Canindezinho, José Walter e Bom Jardim, foi a abordagem em área periférica. “A gente enxerga a periferia como potencialidade”, afirma Eli Rodrigues, que pontua a necessidade que os pesquisadores sentiam de produzir para dentro da periferia.

Por esse motivo, até o encontro com o oficineiro, a direção da pesquisa seria outra. Depois das oficinas relacionadas à análise de dados, eles precisaram recalcular a rota e estabelecer novos objetivos de pesquisa, buscando obter quais ferramentas digitais mais utilizadas pelos estudantes e como enxergam as ferramentas digitais, entre outras questões.

O artigo que planejavam escrever sobre o tema permanece nos planos dos pesquisadores. Ariadne, estudante de Serviço Social, pensa até na possibilidade de se utilizar da pesquisa para a produção do seu trabalho de conclusão de curso. Os três amigos seguem com o desejo de produzir, como diz Eli, “de nós para nós”.

Transeuntes atentos à metrópole e munidos de uma tecnologia comum a seus corpos, Lucas Vaz, Lucian Charada, Raphael Farinhas e Raqueline de Lourdes produzem pensamento através da dança. Com o projeto Sintético, desenvolvido no Laboratório de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ), o grupo Ritmo Soul’to investiga, expressa e denuncia as disparidades sociais que os alvejam.

A conexão entre os quatro pesquisadores do Sintético, assim como as questões que despertaram a inquietude para a elaboração do projeto de pesquisa, está na dança e na relação de cada um com a urbanidade. As vivências e percepções de cada componente do grupo acerca da cidade permeiam um projeto que dá fruto a um produto crítico. 

“Nós somos as sobras do que é entregue à sociedade; a gente fica com os restos”, afirma Lucian Charada, 34, referindo-se à classe social dos pesquisadores. Quando se dispuseram a pensar sobre a relação entre corpo e tecnologia, estenderam o conceito à ideia de ancestralidade e resistência. A distribuição de água, por exemplo, é definida pelo grupo como uma tecnologia excludente.

“O corpo constrói sobrevivência; isso também é tecnologia”, afirma Lucian. Ao passo em que o projeto aponta discussões relacionadas à questão de classe, evidenciando quais são os corpos afetados pela exclusão, leva também em consideração os meios que tais corpos encontram de resistir a esta condição.

A crítica é latente no produto desenvolvido pelo grupo. A performance cênica transita entre dança e instalação, sendo o primeiro trabalho cênico de Raqueline e Farinhas, que até então tinham sua experiência na dança relacionada à rua. Enquanto ela é uma liderança feminina em danças urbanas dominadas por homens, ele ganha a vida com a dança no sinal de trânsito.

Quando estendem a noção de tecnologia, os pesquisadores também compreendem os meios de proteger o corpo do sol, no caso de Raphael Farinhas, 30, como uma tecnologia. O chapéu e as mangas longas usadas para enfrentar a exposição ao sol o escoltam em sua “teimosia de continuar vivendo de arte”, como diz o artista.

As vivências de cada um levaram à formação do coletivo e às indagações lançadas pelo projeto de pesquisa. “Sintético me atravessou porque eu já vivia tudo isso na pele”, declara Farinhas. O pesquisador parte de suas experiências para agregar ao grupo, que, conforme Lucian Charada, é composto por pessoas que foram escolhidas a dedo.

Acostumado a percorrer a cidade de bicicleta, Lucas também é um observador da metrópole. A vida urbana, tão presente no projeto e no cotidiano dos pesquisadores, é levada em conta como parte da formação dos componentes de Sintético.

“Fiquei em êxtase quando descobri que a dança podia ir pro palco”, conta Lucas Vaz, 25. Assim como Lucian, que começou sua trajetória na dança a partir das batalhas de dança, Lucas começou a se envolver com a linguagem por meio das danças de rua. Não por acaso, as danças urbanas estão incorporadas na proposta de Sintético e no produto desenvolvido pelo grupo.

Raqueline de Lourdes, 24, não só teve seu primeiro trabalho cênico no Laboratório de Pesquisa do CCBJ, como também sua primeira experiência na área da pesquisa. “Eu não tenho formação”, foi o que a artista informou à banca responsável por avaliar os projetos submetidos aos Laboratórios de Pesquisa. “Você tem formação, sua formação é a rua”, ouviu em retorno. Para Raqueline, o processo de pesquisa abriu-lhe uma nova perspectiva: ela pode dançar o que quiser.

Apesar da relação com a rua e com a cidade, o primeiro vislumbre da elaboração de Sintético surgiu na formação de Lucian em um curso técnico em dança, com o espetáculo “Sujeito corpo amorfo”, que ele define como a sinopse de Sintético – uma espécie de prévia do que viria a ser o projeto que desenvolveram no CCBJ.

Quando Lucas, que já havia sido aluno de Lucian, tomou conhecimento do projeto, ficou determinado a tirá-lo da gaveta. A vontade que eles tinham de dividir o palco e a necessidade de buscar renda através da dança os levou a encarar os desafios do processo, dividindo também as três bolsas de formação entre os quatro integrantes.

A força do coletivo na criação

Durante o processo de formação no Laboratório de Pesquisa em Dança da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim, adicionando à bagagem trazida pelos pesquisadores em suas experiências corporais, a investigação abrangeu outras práticas e técnicas além das Danças Urbanas e também envolveu processos de experimentação dramatúrgica.  

Além da importância da bolsa, pontuada por Farinhas e Lucian, a autonomia e o “respeito enquanto pesquisador e artista” foi uma das principais diferenças observadas por Lucas e Lucian entre desenvolver pesquisa na universidade e na Escola de Cultura e Artes do CCBJ. 

O acolhimento identificado por Raqueline é reconhecido pelos seus parceiros de pesquisa. Segundo Lucas Vaz, não houve pressão para a criação de um produto, mas a preocupação de que eles levassem do processo algo que agregasse artisticamente suas caminhadas. Ainda assim, com a mediação de Loly Pop, o grupo driblou o desafio de delimitar o tema da pesquisa e criou uma nova peça artística como produto final do processo.

Lucian Charada afirma que costuma trabalhar sozinho por ser mais fácil. Em sua percepção, as políticas públicas operam de maneira individualista, mas, para ele, “o coletivo fortalece a gente”. Sintético é um projeto de pesquisa que reúne os quatro artistas que o assinam e explora questões externas a partir de suas visões de mundo e experiências.

O resultado da investigação se deu através da dança, que Lucas define como uma tecnologia. Através dela, seus corpos têm construído resistência e produzido pensamento acerca do mundo ao seu redor. Em Sintético, o potencial criativo dos artistas e pesquisadores do grupo se eleva na valorização de suas vivências e na força do coletivo.

Anúncio: inscrições abertas para participar do Lar Doce Lar e reformar a sua casa! A proposta parece tentadora, mas é falsa. Do anúncio que circulava em uma rede social para participar do famoso quadro de um programa de televisão, surgiu a ideia para o projeto de pesquisa “Segurança de dados e pessoas em vulnerabilidade social: um estudo exploratório”, desenvolvido no Laboratório de Pesquisa de Cultura Digital, por meio da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ).

Thalita Feitosa tomou conhecimento do anúncio falso por meio de sua mãe, de 40 anos, que acreditou na veracidade da propaganda. E ela não era a única. Olhando os comentários da publicação, Thalita observou uma quantidade considerável de pessoas acreditando naquele anúncio que, provavelmente, se implicaria em um golpe a quem clicasse.

Essa observação suscitou a desconfiança de que existe uma relação entre os riscos aos dados dos usuários das redes e as pessoas em situação de vulnerabilidade social, uma vez que as pessoas interessadas em participar de um programa de TV que oferece reconstruir a sua casa são aquelas pertencentes a classes sociais menos favorecidas.

O olhar apurado de Thalita juntou-se ao de seus amigos de adolescência: Lemuel dos Santos e Ronis André da Silva. Juntos desde o ensino médio, os jovens de 21 anos inscreveram o projeto nos Laboratórios de Pesquisa 2023, levando em conta a experiência de cada um na área da Cultura Digital e a sua relação com a periferia.

Ao longo do processo, os pesquisadores dividiram as etapas do trabalho de pesquisa na produção de conteúdo e consultas bibliográficas, aplicação de formulário online e visitas a escolas EJA, voltadas para a educação de jovens adultos, para realizar entrevistas presencialmente. As duas escolas visitadas pelo grupo ficam localizadas nos bairros Parque Santana e Bom Jardim, em Fortaleza.

O grupo, formado por residentes de periferias da cidade – sendo essas Mondubim, Parque São José e Siqueira, onde moram Lemuel, Thalita e Ronis, respectivamente –, considera a pesquisa de campo o momento mais impactante do processo por poder visualizar como o tema pesquisado pelos três amigos afeta a sociedade. “É uma galera que não é vista”, afirma Ronis André.

Ele ressalta a importância do projeto do qual faz parte por se debruçar sobre uma questão pensando a forma como ela afeta um grupo social marginalizado. “As pessoas pensam que a periferia não tem conectividade”, diz, apontando que a pesquisa de seu grupo comprova justamente o contrário. A fala do pesquisador, então, resvala no resultado prático buscado pelo grupo; eles querem transformação social.

Pesquisa como ferramenta de transformação

Tendo a experiência no Laboratório do CCBJ como a primeira na área da pesquisa, Ronis se interessou em adentrar nesse universo devido ao viés social levado em conta no objeto da pesquisa e às ambições que o grupo possui. Eles almejam que o projeto desenvolvido por eles sirva para a criação de políticas públicas voltadas para a educação digital, pois, segundo Thalita, “nossa cultura não estava preparada para o ‘boom’ da tecnologia”.

O grupo chegou a essa conclusão por notar que todas as pessoas que estão conectadas na Internet estão suscetíveis aos riscos de fornecer seus dados, até mesmo os grupos que os pesquisadores menos esperavam. É o caso de pessoas com ensino superior, por exemplo, que são alvo comum de fraudes bancárias por, de acordo com Thalita Feitosa, fazerem mais compras online.

Inicialmente, os três amigos tinham o desejo de voltar a pesquisa para toda a cidade de Fortaleza. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, que Lemuel define como uma experiência de muito aprendizado, com o suporte do professor mediador Alexandre Barbosa Lins, eles começaram a compreender como delimitar a pesquisa e o que perguntar para as pessoas entrevistadas pelo grupo. 

“As pessoas não são só objetos de pesquisa, a gente consegue se enxergar nelas”, complementa Lemuel dos Santos, que já havia tido contato com a área da pesquisa na universidade ao desenvolver um artigo científico em uma disciplina introdutória. Ele e Thalita contam que, nos Laboratórios da Escola de Cultura e Artes do CCBJ, o contato humano e o suporte recebido ao longo do processo fizeram da pesquisa um trabalho mais proveitoso.

Com a elaboração de uma apresentação aos moldes de um seminário, a produção de um artigo científico e de mini documentário, Lemuel dos Santos, Ronis André e Thalita Feitosa voltam seu olhar de pesquisadores para a periferia e buscam a implicação prática de um trabalho que por vezes está associado somente à produção teórica. “Segurança de dados e pessoas em vulnerabilidade social: um estudo exploratório” mostra as possibilidades que se abrem quando a periferia é munida de condições para a produção intelectual e, nesse caso, científica.

Para onde uma pista de skate pode levar? A história de Valmir Rodrigues Jr. – conhecido como Tioksk ou simplesmente Kaska (Ksk) –, David Lucena e Lucas Evangelista mostra que esse tipo de pista que não desemboca em lugar algum pode levar à arte, à cultura e à produção intelectual.

Os três jovens adultos que se encontraram na vida por meio da pista de skate do bairro Bom Jardim, quando ainda eram adolescentes, não imaginavam que sua trajetória os levaria a se tornarem, além de artistas, pesquisadores nos Laboratórios de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ), com o projeto “Bomjarmaps”, em 2023.

David, 27, conta que, através do skate, eles começaram a fazer rima “de zoação”, até que viram potencial para tornar a diversão algo sério. Nesse período, quando tinha 16 anos, para além da atuação como MC, Young Trezzer, como é chamado, começou a participar de projetos sociais e aprendeu a trabalhar com produção musical.

Lucas, 24, é um instrumentista apaixonado por música desde a infância, mas o Hip Hop só chegou em sua vida quando passou a frequentar a pista de skate que Kaska e David ocupavam. Aos 16 anos, ele começou a trabalhar com produção musical, fazendo música a partir do beat do rap. Foi ali também onde David e Kaska começaram a fazer rima.

À época, quando tinha entre 19 e 20 anos, Kaska, 29, também começou a entender sobre produção e teoria musical, participava de saraus e fazia rimas como MC. Ele fazia parte do grupo Sem Saída e é um dos idealizadores do coletivo Covil Cran, do qual David também é membro, que foi contemplado na Convocatória para Manutenção das Atividades Artísticas e Culturais de Grupos e Coletivos do CCBJ.

O projeto desenvolvido no Laboratório de Pesquisa em Música do CCBJ representa o engrossamento da relação do grupo com o equipamento, trazendo à tona a necessidade de falar sobre a movimentação artística que acontece no Grande Bom Jardim, território onde os três pesquisadores do projeto “Bomjarmaps” demonstram orgulho em residir.

Movidos pelo desejo de “procurar inspirações daqui”, Tioksk, David e Lucas depararam-se com a inquietação pela queda da efervescência do Hip Hop no território e, por meio do “Bomjarmaps”, pretendem alavancar os eventos da cena dessa vertente cultural, bem como seus artistas e coletivos.

“Era massa a circulação antes, mas os artistas têm dificuldade”, afirma David Lucena sobre os desafios de dar continuidade ao trabalho artístico devido à escassez de fomento. Segundo Kaska, portanto, um dos principais objetivos do projeto de pesquisa “Bomjarmaps” é “criar maior circulação”, pois normalmente “a galera só faz e solta”, sem depreender de recursos para distribuição e divulgação.

Para isso, eles fizeram um pré-mapeamento das iniciativas de Hip Hop existentes nos bairros do Grande Bom Jardim. Em seguida, aplicaram um questionário que chegou a 41 artistas musicais de Hip Hop no território, além de realizarem entrevistas com cinco desses artistas (um por cada bairro) e desenvolverem uma cartografia. O que eles querem, então, é fazer o cenário voltar à ativa – e, como mostra a pesquisa do grupo, artista não falta.

A ideia inicial dos três parceiros de arte e pesquisa era criar um mapa que representasse as iniciativas voltadas para a música no Grande Bom Jardim. Levando em conta o histórico dos três com o Hip Hop, acharam por bem afunilar a pesquisa na vertente sobre a qual falam com propriedade e por experiência própria.

Não por acaso, eles estão entre os artistas contabilizados no projeto. Lucas Evangelista aponta que eles acabaram por fazer uma espécie de “autoanálise” no processo, ao mesmo tempo em que esbarraram na necessidade de ‘separar’ o artista do pesquisador em alguns momentos. Afinal, além de pesquisadores, contribuem para a cena do Hip Hop no Grande Bom Jardim com suas produções artísticas e, por isso, seus nomes devem estar no mapa que pretendem construir para deixar à mostra as pessoas que fazem a cena do Hip Hop acontecer no território. 

Na contramão de um mapa de facções criminosas, Kaska pontua a importância do projeto de pesquisa do qual faz parte pela necessidade de mostrar o Grande Bom Jardim relacionado à arte e à cultura, ao invés da criminalidade comumente associada ao território periférico de Fortaleza. O resultado da pesquisa atesta o que eles já sabiam: existe arte no Grande Bom Jardim. E o grupo se compromete a dá-la maior visibilidade.

Na arte ou na pesquisa, produção intelectual de dentro para dentro

Durante a pesquisa que David Lucena, Valmir Rodrigues – o Kaska – e Lucas Evangelista desenvolveram no Laboratório de Pesquisa de Música da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim, ouviram de um dos artistas entrevistados que se sentia motivado a fazer música só por vê-los realizando um projeto como o “Bomjarmaps”.

David revela esse relato com orgulho ao contar que sua maior expectativa para o projeto é “motivar a galera a continuar a fazer sua arte”. As expectativas dos parceiros de arte e pesquisa são externas a si mesmos, mas voltadas para dentro do território onde eles movimentam seus “corres”, que, como preza o próprio David, “a gente não quer que morra aqui”.

Para Lucas, saber que o movimento existe gera a possibilidade de espelhar outras pessoas. Impulsionar os pontos de cultura do território e dar visibilidade aos artistas do território,  listados por Lucas e Kaska, também são propósitos centrais do grupo. Com sede de possibilitá-los, David e Lucas aceitaram o desafio de trabalhar com pesquisa pela primeira vez.

Kaska, que já havia tido experiência com pesquisa no ensino básico, conta que esse contato ajudou a desenvolver a pesquisa no Laboratório de Pesquisa do CCBJ, mas quando coloca as duas experiências em perspectiva, considera que “na escola, era um bagulho muito preso”. Hoje, ele pensa que o fato de estar, junto dos colegas, desenvolvendo um projeto de pesquisa pode motivar outros a também mergulhar neste universo.

Apesar dos desafios impostos pela limitação do tempo e pela dificuldade de encontrar material sobre o território, o grupo finalizou o processo no Laboratório de Pesquisa de Música com o esboço de um mapa que ilustra o Grande Bom Jardim como berço de arte, de onde eles seguem desenvolvendo produção intelectual – seja na rima, na composição musical ou na pesquisa.

Dança, música e audiovisual se encontram nas figuras de Isabela dos Santos, Francisco William e Vitor Grilo, nome artístico de Vitor Mesquita, por meio do projeto Arrebol. Nos Laboratórios de Pesquisa 2023, da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), embora inscrito como um projeto do Laboratório de Dança, o grupo desenvolveu um trabalho que entrelaça as três linguagens artísticas às quais cada integrante pertence.

Isabela dos Santos, 26, dança desde os 8 anos de idade e desenvolveu o Arrebol como projeto de TCC, trabalho de conclusão do curso, no curso técnico que fez em Produção Cultural. No entanto, a pesquisa ficou reservada à produção teórica. No Laboratório de Pesquisa de Dança, Arrebol integrou o audiovisual e cumpriu uma jornada de experimentações para desenvolver um projeto de três linguagens que dialogam entre si.

Com uma rabeca em mãos, instrumento sobre o qual pesquisa desde a graduação, William, 29, se predispôs ao desafio de dançar pela primeira vez. Ao lado de Isabela, ele busca guiar a música pelo movimento do corpo da bailarina, colocando, como ele mesmo define, “a música em função do corpo”, invertendo o processo mais comum de junção dessas duas linguagens.

Quando Vitor Grilo, 39, entra na equação, já para o processo de pesquisa do Laboratório, o audiovisual agrega ao projeto novas camadas e alcança novas formas de fazer música e dança, conforme conta Isabela dos Santos. Para ela, foi justamente a maior possibilidade de experimentação que fez o processo no CCBJ ser proveitoso e se destacar entre suas outras experiências na área da pesquisa.

Em um mundo saturado de imagens, como não estragar a estética minimalista, já desenvolvida por William e Isabela, ao adicionar o audiovisual? Esse foi o questionamento que pairou sobre a cabeça de Grilo e seus companheiros de pesquisa. Na experimentação, eles encontraram respostas: a superação da tela.

Como produto final apresentado na Partilha final dos Laboratórios de Pesquisa, o grupo desenvolveu uma projeção mapeada que provoca a sensação de que o espaço dança junto de Isabela e de William. A técnica, conhecida como video mapping, era estudada e foi levada ao grupo por Vitor Grilo, possibilitando a projeção de imagens em qualquer superfície. “É como se o espaço dançasse junto com a gente”, afirma Isabela.

Assim como o espaço, a rabeca nordestina, instrumento sobre o qual William começou a pesquisar na sua licenciatura em Música, possibilita o movimento do corpo do instrumentista e também abre espaço para um “caminho novo para fazer música e abre margem para a criação”, considera William. 

O projeto de pesquisa de Isabela, Grilo e William se difere dos demais nos Laboratórios de Pesquisa 2023 devido à prioridade e preferência pela experimentação, possibilitada pela metodologia da Escola de Cultura e Artes do CCBJ. “A gente foi partindo da nossa bagagem”, afirma Grilo, pontuando a construção do projeto a partir da troca entre ele e seus companheiros de pesquisa.

Pesquisa como experimentação e troca

Colocando a “investigação em função da realização”, como define Vitor Grilo, o grupo conseguiu chegar a novas conjunções. Mesmo da relação nada extraordinária entre música e dança, surgiram novos elementos a partir do processo de pesquisa do Arrebol. Isabela, que tem uma longa caminhada na dança, não sentia que a música era integrada à linguagem. O projeto, de certo modo, também é fruto de experiências nem tão positivas.

“Sempre dava algum erro na trilha sonora”, conta, referindo-se às suas experiências passadas. Por isso mesmo, ela queria a música como parte do processo, não como um elemento que meramente acompanha sua expressão artística principal – a dança. E, assim, a figura do músico deixa de funcionar como se fosse “parte do cenário”. A rabeca, então, é um instrumento que, conforme explica William, colabora para a movimentação do instrumentista e tem forte relação com a dança por ser pequeno e funcionar como extensão do corpo.

Além de propor uma nova forma de conexão entre música e dança, quando o audiovisual é adicionado ao processo artístico e de experimentação do grupo, a primeira linguagem ganha capacidades a mais, como a de criar “ondas sonoras como forma de projetar cores e formas”, de acordo com William. Além do corpo, ele conta que a luz e o cenário também indicam a linguagem e a escala musical.

A ideia, para Vitor Grilo, é que uma linguagem não se sujeite à outra. O pesquisador pondera que as políticas públicas operam sob a individualização das linguagens, enquanto o projeto de pesquisa do qual faz parte se lança em um caminho de entrelaçar três manifestações distintas em uma só e, ao mesmo tempo, manter “cada linguagem com seu discurso”.

“É bem mais democrático”, afirma William sobre o processo de pesquisa no Laboratório do Centro Cultural Bom Jardim. Ao comparar a experiência de pesquisa no equipamento com as anteriores, como o TCC da sua graduação em Música, ele visualiza que a série de formatações exigidas pela academia “impossibilita muitas pessoas de desenvolver pesquisa por não conseguir se apropriar desses mecanismos”.

Para Isabela, o maior diferencial é o alcance da pesquisa. “A gente faz pesquisa para partilhar” e, durante os cinco meses de desenvolvimento, os grupos se reúnem para mostrar o que estão construindo e dividir um pouco de seus processos. Para William, o procedimento e o produto final são os grandes diferenciais, afinal, foi o que possibilitou a criação livre e experimental do grupo. 

Da “banalização da relação entre projeção e música”, que Grilo aponta como uma combinação saturada em shows de música, por exemplo, eles conseguiram inserir a tela enquanto dispositivo que molda o espaço e elaborar um modelo de expressão artística que eleva a potência da arte a partir da junção da força de três linguagens, interligando o melhor de cada pesquisador do Arrebol a partir da sensibilidade.

Uma análise da  identidade cultural através do cinema e a busca de ver a si mesmo

Sem referências de preservação audiovisual, mas cientes da existência de produção no Grande Bom Jardim, o grupo “Imagens na Periferia: memórias, preservação e acesso ao audiovisual do Grande Bom Jardim” busca, como o nome já anuncia, resgatar, preservar e propagar a memória e identidade cultural do território a partir da sétima arte realizada na área.

Do Extensivo em Audiovisual aos Laboratórios de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (ECA/CCBJ), os pesquisadores que fizeram um levantamento fílmico do Grande Bom Jardim durante o processo de pesquisa desenvolvido no equipamento também são contribuintes do conteúdo que preenche o agrupamento das obras fílmicas do território ao qual pertencem.

Elvis Alves e Henrique Sales, conhecido como Ricco, foram estudantes do Programa de Audiovisual da Escola do CCBJ, a ECA, na segunda turma do Extensivo em Audiovisual. O percurso se estendeu de 2021 até 2022, quando Willi Sales, estudante de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), passou a participar da formação como monitora.

O caminho dos três se cruzou através do CCBJ. E do audiovisual. Ricco e Elvis se conheceram em 2019, em um curso de roteiro realizado no equipamento. Desde então, tornaram-se amigos inseparáveis e parceiros de trabalho – colaboração notável pela produção do “Noites em Claro”, filme dirigido e roteirizado por Elvis e produzido por Ricco para ser apresentado como trabalho de conclusão do curso de extensão em audiovisual, contando com Willi como técnica de som.

A produção, realizada no Bom Jardim/Granja Lisboa, tem rodado festivais e mostras de cinema pelo Brasil, tendo sido premiada algumas vezes. Em 2022, Willi chega para somar ao time e, em 2023, o trio toma para si uma nova empreitada: construir um trabalho de pesquisa que contribua para fortalecer o cenário no qual os três estão inseridos.

Moradores do bairro Granja Lisboa e Granja Portugal, que compõem o território ao qual a pesquisa do grupo se delimita, Ricco, Elvis e Willi se lançam em uma busca que também se trata de si mesmos. Do desejo de celebrar o cinema do Grande Bom Jardim, Ricco e Elvis já ruminavam possibilidades de realizar uma mostra das produções realizadas no território.

Quando abriram as inscrições dos Laboratórios de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes do CCBJ, eles resgataram o tema e encontraram em torno de 40 filmes produzidos em seu território de origem. Durante os cinco meses do processo de pesquisa, os três pesquisadores dividiram seu trabalho em teoria, pesquisa de campo e catalogação.

Eles consultaram uma bibliografia relacionada à história, arquivística e preservação, e visitaram instituições que trabalham com preservação. Além disso, fizeram aplicação de formulário, conversaram com realizadores e fizeram a catalogação dos filmes, que, embora tenham identificado em maior quantidade, chegaram a 12 ou 15 obras devidamente catalogadas pelo grupo.

“A gente tá sendo bem pioneiro”, afirma Willi Sales, frente a escassez que observaram no cenário de preservação audiovisual. Um dos acontecimentos que despertou essa perspectiva foi a tentativa de visita ao acervo da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult CE), que não deixou de ser apenas uma tentativa porque o acervo que deveria conter as produções cearenses está ao léu.

“A gente não tinha ideia da discussão que a gente tava abrindo”, diz Elvis. A iniciativa dos jovens cineastas, então, se lança sobre um universo do qual não conseguiram encontrar muitas referências. Ainda assim, e a despeito dos desafios encontrados pela dificuldade de acessar as instituições oficiais e de conseguir retorno dos realizadores, conhecer a história do bairro foi um dos principais ganhos reconhecidos pelo grupo.

Debruçar-se sobre o Grande Bom Jardim, para o grupo, significa olhar para a própria história e descobri-la. Não à toa, a própria produção deles foi contabilizada no processo de pesquisa e catalogação, desenvolvendo um histórico para que possam espelhar seus trabalhos, delinear uma estética da periferia e demarcar a produção artística que já acontece no território.

Produzir e preservar memória

Para Willi Sales, a experiência na pesquisa não foi a primeira, mas a surpreendeu positivamente. Elvis também já havia entrado em contato com a pesquisa na graduação. Já Ricco se pergunta se teria a oportunidade de desenvolver pesquisa se não houvesse os Laboratórios de Pesquisa do ECA/CCBJ. “Se não tivesse no CCBJ, onde eu faria isso?”

Enquanto Willi relata a falta de acolhimento e até de orientação em sua experiência passada, em uma disciplina da faculdade, Elvis conta que sua proposta de TCC, o trabalho de conclusão de curso de Publicidade, ficou como segundo plano devido às exigências técnicas da instituição. Para a faculdade, era mais importante as informações adicionais solicitadas pela instituição do que o produto audiovisual ao qual ele se dedicou a apresentar como TCC. 

A possibilidade de explorar caminhos diferentes na pesquisa, para Elvis, foi aberta no Laboratório de Pesquisa Audiovisual, que ele define como “sem amarras”. Para Willi, a escolha do orientador e as partilhas entre os grupos de pesquisa “tornam o processo mais humano”.

Ricco, que teve o início do seu trabalho audiovisual diretamente associado ao Centro Cultural Bom Jardim, define a importância da pesquisa como uma forma de pontuar que, na periferia, não só se produz, mas também é necessário estudo para produzir e fomento para a pesquisa.

Elvis pontua a existência dos Laboratórios de Pesquisa como fruto da demanda da produção artística e acredita que o serviço incentiva conexões e demarca que “arte na periferia não é excepcional”. Conforme Willi, “na periferia se produz arte e pesquisa”. E eles podem comprovar pelo pŕojeto “Imagens da Periferia” e pelo trabalho audiovisual que vêm desenvolvendo no território no qual vivem e, agora, também pesquisam.

Do encontro musical entre Álvaro Abreu, Berg Menezes e Victor de Oliveira, surgiu uma banda de rock, que leva o nome do segundo integrante citado, em 2016. Acostumados com os palcos e com estúdio, o grupo se viu de outra forma com o Laboratório de Pesquisa 2023, da Escola de Cultura e Artes do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ). Com o projeto Fagulha, eles começaram a desenvolver pesquisa, levando a relação com a música para outros rumos.  

De criação, eles entendem bem. Envolvidos desde a adolescência com música, os três se conectaram através da linguagem e, ávidos pelos novos desafios apresentados pelo processo de pesquisa, uniram-se também para expandi-la. O projeto do grupo musical que se tornou também um grupo de pesquisa propõe novas formas de criar e consumir música a partir da inclusão, lançando-se sobre a acessibilidade como um dos componentes da criação artística.

Como surdos podem consumir música e como cegos podem curtir shows musicais? FAGULHA, formado também por Thaís Paz – que colabora com os projetos musicais da banda –, se lança sobre esse questionamento para compreender como tornar o trabalho musical, com o qual todos os integrantes do grupo de pesquisa atuam, possível a todas as pessoas. Como é comum no universo da pesquisa, o projeto surge de um incômodo: a acessibilidade enquanto ferramenta inserida em obras artísticas somente após sua finalização.

Interessados em transformar esse cenário, os pesquisadores realizaram visitas ao Instituto dos Cegos e ao Instituto Cearense de Educação de Surdos (ICES) e conversaram com pessoas cegas e com pessoas da comunidade surda para investigar a adesão desse público a espetáculos musicais e as suas formas de consumir música. Berg chama a atenção para a escassez de instituições voltadas a pessoas com deficiência (PcD), que explica a restrição da pesquisa de campo às duas instituições.

A partir dos diálogos construídos com essa comunidade que, conforme percebido por Álvaro, não é homogênea, eles começaram a pensar maneiras de tornar elementos que vão das luzes e do figurino até o cenário acessíveis a todos os públicos. Um desses recursos é a presença da intérprete de LIBRAS Vanessa de Assis. Ela divide o palco com os artistas pesquisadores, mas sua contribuição na acessibilidade é também artística. Na apresentação do grupo, Vanessa representa o elo entre a música e as artes visuais, tornando a performance bilíngue.

Durante os cinco meses em que se debruçaram sobre o tema, Berg, Victor e Álvaro fizeram algumas descobertas e, enquanto pessoas não-deficientes, despertaram para questões que os fizeram pensar “fora da caixa”. Como tornar o show imersivo para pessoas com deficiência visual foi uma das charadas que passou a movimentar o grupo, depois da questão ter sido levantada por um professor do Instituto dos Cegos, conta Victor de Oliveira.

Outro questionamento que exigiu da mente de Berg, Álvaro, Victor e Thaís foi a inserção de audiodescrição no show, mas a resposta já estava na proposta do próprio projeto: tornar a audiodescrição parte do espetáculo, mais um incremento artístico que abre mais possibilidades de criação e de expansão do público, uma vez que, como Berg é categórico em afirmar, eles estão dispostos a criar e apresentar música para todas as pessoas, não formular um tipo de produção voltada especificamente para pessoas com deficiência.

Além das visitas e dos dados consultados e produzidos pelo grupo, a segunda parte do processo de pesquisa se deu em um ambiente mais familiar: o estúdio. Lá eles puderam executar o que fazem de melhor – criar. Dessa vez, no entanto, a criação é derivada de um processo de pesquisa, o que gerou certa tensão com os resultados, confessa Berg.

O processo também lhes trouxe a constatação de que é numerosa a quantidade de pessoas surdas que não tem contato com música e de pessoas cegas que não têm o hábito de ir a shows. Isso, segundo o que eles apuraram na pesquisa, se deve à falta de acessibilidade comum a esses eventos. Se as produções não pressupõem a presença dessas pessoas enquanto público, cria-se o distanciamento estabelecido.

FAGULHA, então, inicia uma chama de novas possibilidades e pretende-se ser referência no que diz respeito à relação entre música e acessibilidade, imbricadas neste projeto. Além da performance e música autoral inédita, partilhada no dia 29 de novembro no Teatro Marcus Miranda do CCBJ como conclusão da trajetória, o grupo tem planos de levar os conhecimentos adquiridos no Laboratório de Pesquisa para os palcos do futuro.

Pesquisa enquanto alimento para a arte

Pode-se dizer que a relação dos integrantes do grupo Fagulha com o tema de pesquisa desenvolvido no Laboratório de Pesquisa em Música data de anos atrás. O contato de Berg Menezes, 38, com a comunidade surda tem início na escola Joaquim Nogueira, onde trabalhou como estagiário no período de sua graduação e onde conheceu adolescentes surdos na sala de aula. 

Foi também no período da licenciatura em Música que ele conheceu Victor de Oliveira, 31. Nas cinco disciplinas de estágio que os dois fizeram, veio também o primeiro contato com a pesquisa, por meio dos relatórios em formato de artigo que precisavam entregar para concluir as disciplinas.

Álvaro Abreu, 37, por sua vez, se declara autodidata na música. Sua formação acadêmica é em Publicidade e Propaganda e a sua relação com a pesquisa antes do Laboratório de Pesquisa em Música restringia-se ao TCC, o trabalho de conclusão de curso, em que escreveu uma monografia.

Os trabalhos acadêmicos não tornaram o desenvolvimento de pesquisa no Centro Cultural Bom Jardim menos desafiador, mas as diferenças entre os processos não passaram despercebidas. A abordagem e a metodologia do Laboratório de Pesquisa da Escola de Cultura e Artes (ECA/CCBJ) foram ressaltadas pelos participantes pela autonomia e pela liberdade que sentiram.

“É trabalhoso, mas é mais leve”. Em detrimento da experiência anterior na academia, Álvaro pontua que, nos Laboratórios de Pesquisa, o processo é mais fluido e mais livre, embora não deixe de ser formal. “A gente consegue se expressar melhor”, conclui.

Victor complementa o colega de música e pesquisa ressaltando a metodologia da ECA/CCBJ, pautada pela pedagogia das encruzilhadas. Para ele, as Partilhas dos Laboratórios de Pesquisa formam um “senso de comunidade” e possibilitam trocas de figurinhas, como a que tiveram com o projeto Sintético sobre acessibilidade, que enriquecem as experiências.

“Achei fantástica a experiência no Laboratório de Pesquisa”, afirma Berg. Comparando suas experiências anteriores na pesquisa, ele aponta primeiramente a disponibilidade de tempo como motivação para a sua afirmação. Na faculdade, o tempo se divide entre outras disciplinas, o que divide também a dedicação. A autonomia é outro fator determinante para Berg. “A gente foi estruturando [a pesquisa]”, enquanto na faculdade, em sua experiência, o professor era a “figura centralizadora do conhecimento”.

No Laboratório de Pesquisa do CCBJ, cada grupo conta com um orientador. No caso do Fagulha, o orientador é Denor Sousa, escolhido pelo próprio grupo – mais um elemento que contribui para a sensação de autonomia e liberdade percebido pelos pesquisadores do projeto, que também reconhecem o caráter prático do processo formativo como um ponto positivo.

Dos palcos à pesquisa e da pesquisa aos palcos, o projeto de pesquisa Fagulha não só se aplica à prática, como se retroalimenta no fazer deste coletivo musical que experimenta ou, no caso de Álvaro, já experimentou da linguagem até mesmo por trás dos palcos, na produção musical. A partir da pesquisa, o trabalho do projeto coletivo Berg Menezes começou a ser adaptado.

Desde 2019, o projeto musical busca dispor de acessibilidade e adaptar seus produtos. A entrada de Berg, Álvaro, Victor e Thaís nos Laboratórios de Pesquisa 2023 elevou o comprometimento do grupo com a causa e já os coloca em maior nível de proximidade com a comunidade surda, como observa Berg, proporcionando “mais do que música, uma experiência continuada”.

Dispostos a tomar os riscos de se tornar referência em uma produção artística essencialmente acessível, motivados pelo gosto por desafios e pelo desejo de se comunicar com todas as pessoas, o papel do desenvolvimento de pesquisa em torno da temática os ajudou a “compreender como ser acessível”, como diz Álvaro Abreu. E, para além da compreensão, o grupo coloca a acessibilidade enquanto prioridade no fazer artístico e enquanto ferramenta de criação e, assim, conforme afirma Berg, “inventa de ser acessível” e se apresenta como uma fagulha nessa construção.